SER-NO-MUNDO



SER-NO-MUNDO


Uma forma de vida, aparentemente invisível e silenciosa, com 125 nanómetros, o correspondente a 0,000125 milímetros de diâmetro, veio parar e transformar o mundo inteiro nos últimos meses. O que era irrelevante, tornou-se de suma importância. O que nos passava despercebido, detém agora toda a nossa atenção. O que se assomava inusitado ao pensamento, pôs todo o corpo a pensar. O que começou em um, é de todos. Todo o paradigma do nosso quotidiano se alterou, atravessando fronteiras pessoais, sociais e mundiais.
Perante este cenário imediatamente enfartado de ruído, o Terra.Corpo escolheu estar em observação e silêncio activo. Fala-se demais sobre tudo. Pensa-se pouco. Sabe-se quase nada. Não se aceita que escutar(-se) é por vezes o melhor a fazer. Observar é escutar. Sentir e perceber para agir. Pois assim temos estado e assumimos estar, mas nem por isso ausentes.
Não fazemos o que não é possível fazer agora, não queremos fingir que tudo se pode afinal realizar à distância. Jamais nos tornaríamos em operadores de telemarketing artístico, nem tão pouco em loja online de felicidade, e muito menos em videólogos desta nova geração de livestreamers da salvação humana. Como sempre, acreditamos e confiamos nas pessoas, reconhecemos e respeitamos o seu direito à perda, à contradição, a todas as suas emoções, à sua singularidade, às suas realizações com ou sem sucesso, a serem quem são.
Há valores, acções e proximidades que são verdadeiramente insubstituíveis. Encontrar-lhes atalhos de semelhança é negar-lhes a sua profunda importância, é criar-lhes versões degenerativas, é roubá-los de um tempo de pousio que pode ser um momento de inigualável crescimento para todos. No entanto, é-nos exigido que sejamos sistemas produtivos de alto rendimento pelo que parar, aguardar, ficar em silêncio ou aceitar o vazio, sugere-nos um sentimento quase apocalíptico de fim do mundo. Mas esperar e parar é uma forma de exercer a extraordinária qualidade humana de seres toda a vida em devir e mudança, perante a qual temos de saber reconciliar-nos e rever-nos, sem inventar mais distâncias que não nos fazem falta e que poderão ser de regresso insustentável. Afinal, não tem sido de nós próprios que nos afastámos mais, não é de nós que mantemos uma perigosa distância de “segurança”?
Uma pandemia passa por todos: do outro lado da janela, por detrás das máscaras, pelo nosso corpo ou pelos outros como nós, por tudo o que compõe as nossas vidas. Os dias actuais exigem-nos mais do que nunca a abertura a situações incomuns, estamos forçados a encontrar um novo tempo e espaço de co-existência que se prevê longamente provisório. Tudo o que nos era familiar ou previsível, já não o é assim tanto. Descobrimos até que, desde há muito, fomo-nos afastando e tornámos estranho o que nos era familiar. A única coisa que continuamos a ter como certa, é a incerteza. Com toda a inquietude, tensão e angústia que este cenário transporta consigo. Mas estes são, afinal, os mesmos temperos da tomada de consciência e da criatividade na resolução de desafios que nos confrontam com a incerteza e com o nosso permanente estado de vir-a-ser.
A criatividade é uma permanente intenção de adaptação do ser humano ao meio. Quando algo nos inquieta, procuramos naturalmente alternativas que impulsionam a acção e impelem a criatividade. O potencial criativo manifesta-se em qualquer situação da nossa vida, não é condição necessária que aconteça dentro de uma actividade artística. Pensamos isso porque o universo artístico é mais tolerante com a subjectividade, com a imaginação criadora, com o insólito, os avessos e desavessos das linguagens e dos quotidianos.
Como diz Winnicot, “a criatividade que me preocupa aqui é universal. Corresponde à condição de estar vivo”. A criatividade que motiva o Terra.Corpo é uma ética universal do ser humano, uma marca da natureza humana. A criatividade que é vocação ontológica para ser mais e ir mais além. A criatividade que abre e cria o futuro sem fazer da pessoa um a priori da história. Temos de ser autores responsáveis de um futuro sustentável para todos e não apenas as suas vítimas ou consumidores das circunstâncias. Porque ser criativo é, acima de tudo, um compromisso com as nossas próprias convicções na busca de melhores formas de vida, de sintonia com a vida.
É por isso urgente ganhar mais músculo criativo, para levantar com força um sentido de responsabilidade social, para encontrar sentido e confiança no que se faz e em quem se é entre os demais. Continuaremos a nossa caminhada através da expressão artística, evidenciando as qualidades e os recursos pessoais de cada um, transformando o seu potencial em seres criativos, não necessariamente em artistas. Continuaremos a propagar o conjunto de valores humanizadores que a atitude criativa e o pensamento divergente desenvolvem endogenamente. Continuaremos a desentorpecer a resignação e o abandono, estimulando a jornada de seres plurais e verdadeiramente pensantes, gentilmente entranhados na encantadora complexidade e ambiguidade do mundo.


Perante o intenso caudal de informação e desinformação, há que construir uma corrente contínua entre a interioridade de cada pessoa e o seu meio. Para todos os lados que nos viramos há estereótipos e os estereótipos sobre os estereótipos, mais os estereótipos contra os estereótipos. Sermos nós próprios solicita a coragem de manda calar todo o ruído que vai emparedando a nossa atitude vital criadora, senciente e pensadora. Mas para tal, temos de nos geolocalizar internamente. Aproveitar a privacidade de algum isolamento imposto e “sair da ilha para ver a ilha” (José Saramago), para nos encontrarmos a nós próprios, podermos construir significados e atribuir sentidos, imaginar e criar o inexistente, criar alento perante a adversidade, a contradição e o vazio.
É nossa convicção que não temos de tornar-nos em alguém diferente, trata-se sobretudo de expandir e aprofundar quem e o que somos, reinventando novas combinações de nós próprios, da nossa percepção da realidade e dos outros. Trata-se de nos ampliarmos por dentro de nós próprios. Dentro desse mesmo espaço que já existe e que precisa de implicar-se e relacionar-se com as transformações que ocorrem em cada um e à nossa volta, expressando e reconstruindo uma nova relação com o mundo e com as novas fronteiras erigidas. Nesse sentido, continuaremos convosco, a actuar como uma comunidade de vida e de aprendizagem audaz e curiosa, com uma praxis sustentada na preservação da criatividade, lutando pela plena e livre experiência das capacidades próprias de todos, construindo encontros de reciprocidade e autorrealização.
O Terra.Corpo não evitará os percursos estreitos a que nos encontramos limitados. Pelo contrário, e como tanto apreciamos, abrimos ainda mais as portas lá para fora e seguimos de mãos dadas com a Natureza, qualificando sempre todos os sentidos e linguagens no processo criativo, enriquecendo vivências, intencionalidades e valores de ecocidadania e de ecologia integral. Só criando o caminho, é possível questionar o que vemos e lemos do mundo, intuindo forças e fragilidades, construindo conjeturas, formulando hipóteses e criando soluções que expandem a realidade e o conhecimento desta. Numa viagem entre o inédito do quotidiano, a surpresa e o encantamento do conhecimento experiencial e da auto etnografia. Experimentar para interrogar, interrogar experimentando, vivenciando pela diversidade uma enorme riqueza de valores que fundamentam uma Educação realmente humanista e humanizadora.
E onde encontramos melhor espaço para estas descobertas do que ao ar livre, ao ar livre de fumos, ao ar livre e pelos ciclos naturais, ao ar livre de ruído, ao livre e em sintonia com a vida? Neste ano de confinamento, alargamos ainda mais o nosso horizonte e faremos da Casa Mãe de todos nós o lugar privilegiado da escuta e da acção criadora. Nesse sentido, estamos a construir novas parcerias com parques naturais, encontrando espaços inspiradores e acolhedores, plenos e seguros para iniciarmos alguns projetos novos e retomarmos outros já vossos conhecidos, colocando a tónica da nossa intervenção no acto de escrever. “Porque desconfinar não é simplesmente voltar a ocupar o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não conformar-se com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo” (José Tolentino Mendonça).


Vivemos povoados e alimentamo-nos vorazmente de imagens. Somos matéria compósita de uma grande acumulação de imagens externas. Muitas pessoas aguentarão mais segundos sem oxigénio do que sem imagens. Somos demasiado icónicos, dependentes e consumidores compulsivos de imagens, mas imagens que nos embebem a partir de fora. No entanto, sem “imagens de dentro” ficaremos verdadeiramente às escuras, às cegas, à mercê de um zapping para o qual não temos controlo remoto.
As imagens são deslizantes, sempre em movimento, mexem-se e passam mais depressa do que nós as conseguimos ver. É preocupante a crescente necessidade que observamos em mostrar toda e qualquer realização e que representa, para além de muitas outras questões, um desligamento com o momento e com a vivência do presente, o não estar presente no que está a acontecer. Mas porque não são suficientemente gratificantes as memórias afectivas e sensoriais que guardamos do que fizemos? Porque roubamos imaginação à memória? Porque deslocamos tudo para fora de nós? Porque aguardamos sempre por aprovação e aplausos sociais de estranhos? As relações humanas não podem ser icónicas. A imagem faz uma constante ruptura no espaço e no tempo, viaja entre eles, não permite o enraizamento, transfere o valor próprio e intrínseco de um acontecimento e do que sentimos, para um evento fora de nós, para um instante que já é sempre passado e nos exclui, para um lugar impessoal, fragmentado e de esquecimento, sem identidade.
Faz falta ver e olhar com intencionalidade, com direcção. O acto de escrever, e a poesia por excelência, são voz e escuta das imagens que nascem por dentro e por dentro vão crescendo num sentido que ultrapassa, arrisca e transcende a narrativa imagética: é aí onde acontecem as coisas verdadeiramente interessantes, é aí que nos acontecemos. Conscientes da importância da criação de processos que acendam e desenvolvam imagens de dentro, vamos insistir na escrita, criativa e criadora, autêntica, íntima, reveladora. Vamos persistir na multissensorialidade das palavras, na poesia da percepção, na tessitura de linguagens verbais e não verbais que se cruzam na escrita, na leitura e na oralidade. Vamos coexistir nas diversas maneiras de ser-se e dizer-se, mobilizando os recursos afectivos, criativos e expressivos de cada um. Vamos escrever: a escrita em sentido alargado e imersivo, como espaço aberto e vasto de diálogo e de pensamento reflexivo para criar e expressar o infinito potencial de cada pessoa e comunidade.
Perante uma mitologia social desalinhada da liberdade, do tempo livre, da diversidade e do lúdico, o presente confinamento social veio acentuar máscaras e barreiras, os fenómenos do anonimato, da preguiça social e do Efeito Lúcifer das redes sociais, reforçando a incidência do medo, da intolerância e de falsas necessidades de auto preservação. A escrita consciente e criativa, na qual se é autor do que se diz, se pensa e sente é muito mais do que comunicação, é uma forma de ativismo sociocultural, na medida em que nos descrevemos, definimos e tornamos o significado da nossa literacia humana visível, incorporado na escrita. A escrita criativa e a expressão poética, numa perspectiva autorrealizadora e de autor, será um dos caminhos principais de indagação, na construção do espírito crítico, da poiesis criadora de uma verdadeira expressão da identidade de pessoas e comunidades, uma intenção e um agir dialógico na resolução dos desafios que apelam todos os dias a uma tomada de decisões, consciente e transformadora.
Há alguns anos atrás, no final de uma tarde cheia, terminados os labores criativos, uma mulher aproximou-se e muito sorridente, disse-nos algo que nunca mais esquecemos: vocês não fazem actividades, vocês fazem atitudes. Acreditamos que uma atmosfera social que estimule a liberdade criadora e pensadora desencadeia, provoca, evoca uma produção humana significativa capaz de inspirar à sua volta uma nova relação com a realidade. Somos toda a vida seres nascentes e, logo, seres criativos e criadores, seres de afectos e emoções universais, naturalmente idealizadores de caminhos e soluções. No horizonte contemporâneo, a criatividade não pode mais ser paisagem, tem de ser prática humana e de inteireza de Ser. Estamos convosco! Seja onde for que estejamos, estaremos sempre num espaço integrador, motivador e seguro para bem pensar e criar. Seja quando for que estejamos, continuaremos a nossa missão – que uns chamam de infantil, outros de revolucionária – de mudar o mundo e de criar futuro. Seja como for que estejamos, aí pertencemos e estaremos de corpo inteiro.






 

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